24 de jan. de 2010

Dia da Criança

          Vejo cenas de infância na televisão. Vou pensando em cada coisa que aparece na pequena janela do mundo aí fora. E penso em meu filho, caso venha a tê-lo.
          Não quero um filho assim renegado, armado até os dentes, derramando lágrimas de ódio frente à hostilidade imperatriz que o absorve e modifica seu pequeno mundo, mostrando flores sangradas em jardins de ira.
          Não quero um filho submetido a lavagens cerebrais, possuído pelos males das bombas de napalm, resquícios de um passado recente; ou brincando com ogivas nucleares fantasiado de Hitler, divertindo gente sem escrúpulos com seus jogos de guerra.
          Não quero a foto de meu pequeno ser humano manchada com o sangue da humanidade, e nem vê-lo sorrindo com os dentes cravados na carne de um ser irmão.
          Não quero meu filho morto de fome em meio ao banquete de porcos dominadores e mesquinhos.
          Não quero meu filho sem traços de infância, sem braços, sem cabeça, sem pensamentos.
          Quero ver um ser humano estar sendo gerado no ventre materno e ter a certeza de não vê-lo sofrendo e pagando pelos erros de outros.
          Quero um filho que eu não homenageie em um estúpido dia de comércio, destinado apenas à compra do amor de crianças, transformando-as em verdadeiros monstros consumistas, frutos do capitalismo interesseiro.
          Não, não quero mascatear o carinho de meu filho em plena praça pública, como quem compra ou vende um objeto qualquer de uso pessoal.
          Quero um filho sadio, que sorria o sorriso simples e profundo da alegria.
          Que não se constranja em dizer que gosta e nem esconda a verdade quando não gosta; porém, respeitando os direitos daqueles que lhe convivem.
          Quero alguém que não se permita a maldade e não se corrompa pela violência humana; e se deixe viver com alegria e paz.

(14/10/1984)
Não tive filhos. Acho que lá atrás eu antevia as dificuldades de se criar uma criança nesse mundo insano que criamos para o futuro. Ou talvez eu tenha só tio medo da responsabilidade que seria tentar criar alguém que fosse melhor do que a minha própria geração. Vai saber...

Clausura

(da série de textos perdidos)

          Estou só. Neste apartamento moram cinco pessoas e eu estou só. Convenço-me de que, realmente, se pode estar sozinho, mesmo com pessoas dormindo na cama ao lado, no quarto ao lado, no apartamento ao lado.
          Antes, estar só era uma terapia; era encontro, era evolução.
          Hoje, estar sozinho é me encontrar longe de mim mesmo.
          Não há pessoas, conversas, nem entendimentos. Não há amizade, carinho, afago, música...
          Não resta muita coisa: amargas lágrimas depositadas sobre o travesseiro, à noite; a dor física, a dor psíquica; a música cansativa em um rádio emprestado; a cama arrumada; a parede fria; a janela fechada; o dia-a-dia maquinal; a maldita responsabilidade; o desprezível compromisso diário com as obrigações sociais, com os encargos, com lixos comunitários, com a minha insignificância.
          Aqui é ninguém a me ouvir, é sem voz para gritar, é incapacidade de fazer alguém feliz; é apenas estar só e longe. Não há abraços, não há sinceridade, não há humanização. Somente a obrigação de se cumprimentarem uns aos outros com o tradicional e ensaiado sorriso matinal, agradável, frio.
          Estou só, tão só, que até sem palavras fico.
          São fases.
          Um dia passa.
          Um dia acaba.
          Um dia...

(15/05/1984)
Escrito no mesmo dia do anterior, talvez logo depois. Acho curioso ler esses textos agora e ver que eu me sentia tão vazio, porque todas as memórias que tenho de 1984 são absolutamente felizes. Conheci alguns dos melhores amigos paulistanos nesse ano. Pus à prova tudo que eu havia aprendido sobre viver até aquele ponto. Foi fascinante, gratificante e incrivelmente compensandor. Só o tempo para nos fazer entender esses momentos, não?

Em um lugar chamado Sampa

(da série de textos perdidos)

É só um quarto. Uma janela constantemente fechada, por causa do frio. É pena que, mesmo fechada a janela, o quarto consiga ser mais frio que o tempo lá fora.

Não há papos; não há sapos; não há grilos; não há pássaros, nem árvores, nem nada!

Minha planta está morta (acho), perdida num pote de manteiga com um pouco de terra.

Sinto frio nas mãos e nos pés. Sinto dores na coluna. O monstro quase me mata. Com ele a solidão aumenta.

Tem um relógio numa cadeira em frente a mim. Tem um saco de supermercado, com lixo, na minha cabeceira. Tem um rádio nos pés da minha cama.
                   Toca qualquer coisa.
                   Qualquer coisa me toca
                   Pra dentro da toca.
                   Qualquer coisa me sufoca
                   Qualquer coisa chamada solidão.

Blusas, livros, chaves, papel, bolsa, pasta, tudo na cadeira de cabeceira. Eu posso dizer que sou muito original. Estou certo de que poucas pessoas resolveram optar pela cadeira de cabeceira ao invés da mesa de mesmo nome.

Divagações, afluxo de idéias confusas, sem definições.
Desculpe.
Tenho muitas saudades. Te gosto muito. Quero um beijo em Glauci, um beijo em Bruna e um grande beijo em você.
Acredito muito que sou feliz.
Nunca deixe de amar. Um dia estou aí.
"Maria fumaça não canta mais..."

(15/05/1984)
Deveria ser uma carta para uma amiga. Eu estava em São Paulo, fazendo curso no SENAI. Sentia saudades de meus amigos no Rio de Janeiro. Dividia apartamento com mais quatro pessoas do trabalho. Só havia um deles com quem eu me dava relativamente bem. Mas não tinha nada em comum com nenhum deles. O que, de certa maneira, foi bom, pois fiz muitas coisas sozinho, conquistei novos amigos e descobri que São Paulo podia ser bem mais interessante que minha saudade de casa me deixava ver.