1 de set. de 2011

Porque não posso ir para o céu

Uma pessoa do meu relacionamento profissional, a respeito do meu desdobramento para fazer um favor a uma pessoa inconveniente, disse-me que eu iria "direto para o céu, sem escalas". Apesar da dramaticidade da declaração, a vejo como reconhecimento por aquilo que deveria fazer parte do cotidiano, que é tentar fazer o melhor trabalho possível, dentro das condições materiais que temos. Já do ponto de vista espiritual, se eu acreditasse na simplicidade da existência de um céu ou um inferno - acredito na necessidade de desenvolvimento do espírito através de reencarnações múltiplas, mas isso é a minha crença, não a imponho a ninguém - ainda assim, não poderia concordar com a afirmação que essa colega fez. Por isso, respondi o seguinte para ela:

Não, não vou direto aos céus porque, em lugar de me resignar diante das vicissitudes, revolto-me, coloco minha pequenez humana acima da pequenez alheia e distribuo impropérios aos quatro ventos, manchando minha alma com a nefasta nódoa da ira. Gostaria de ser zen e aceitar serenamente que as pessoas fazem o que fazem e são o que são por não terem ainda compreendido que o respeito à vida e ao outro é maior e mais importante do que suas pequenas regalias ou seus desprezíveis delírios de poder, seja este grande ou pequeno. Não, ao entregar-me ao nada nobre esporte de maldizer esses que agruras nos impõem, direta ou indiretamente, igualo-me a eles e rebaixo minha qualidade como ser humano. Esta, talvez, seja a luta, o “bom combate”: vencer a si mesmo diante da crueldade cotidiana para não sucumbir à brutalidade do mundo, mantendo-se humilde e digno. Infelizmente, para mim, ainda sou “humano, demasiadamente humano” para tal nobre feito.


Nessa minha "demasiada humanidade" percebo, como me disse outra pessoa - esta uma grande amiga, que me conhece há muito tempo e tem mais fé em mim do que eu mesmo - que sou eu quem me permito ser agredido e, consequentemente, extravasar uma "fúria insana" que a) nem responde adequadamente ao que a causou; e b) nem produz absolutamente nada de positivo, nem para mim, nem para os outros.


Então, complementando um pouco o pensamento acima, preciso não desistir de combater. Não é fácil, porque, como bem diz Emir Sader em seu post de 29/8/2011 (clique aqui para ler o texto) "O ceticismo parece um bom refúgio em tempos em que já se decretou o fim das utopias, o fim do socialismo, até mesmo o fim da história. É mais cômodo dizer que não se acredita em nada, que tudo é igual, que nada vale a pena." Não sucumbir ao que Sader chama de 'ceticismo-cinismo' requer certo estoicismo e uma fonte inesgotável de otimismo. 


Desconheço fontes inesgotáveis de otimismo, mas procuro cultivar algumas que me confortam e que aos olhos dos outros podem (e talvez sejam) ligeiramente piegas ou clichês - mas como jamais me obriguei ao exercício da originalidade... : meus amigos certamente são a maior fonte de otimismo que tenho. São poucos (contei-os nos dedos outro dia e deu 11 - daqueles com quem "já comi um quilo de sal", como se diz) e totalmente diferentes entre si, e com quem tantas vezes discordei e discuti, mas que jamais deixaram de me proporcionar o alívio emocional & intelectual (sim, isso existe) que me ajudasse a vencer as agruras cotidianas e fizesse querer acordar no dia seguinte.


Dividir a vida com alguém que me respeita e a quem respeito, com quem aprendo um pouco a cada dia sobre moral, determinação e solidariedade e que, apesar de todas as inumeráveis (e algumas vezes intransponíveis) diferenças (principalmente políticas), ainda tem carinho (e tesão) por mim, também me ajuda a erguer a cabeça acima do "estado de coisas" que nos imerge constantemente na brutalidade e na tristeza.


Poder, ainda que eventualmente (pois as pressões do dia-a-dia são muitas), participar de um trabalho voluntário que ajuda pessoas em situação de desespero no Nordeste e ainda várias crianças em São Paulo, porque é prazeroso ajudar (ver aqui: Amigos do Bem).


Além dessas "fontes fixas", sou agraciado com as aleatórias, que surgem do nada e me fazem sorrir de surpreso contentamento. Muitas vezes elas aparecem na forma de textos escritos por blogueiros que acompanho, como a Lola em Escreva, Lola, Escreva, que me faz refletir criticamente sobre o discurso machista que aceitamos como natural - mas que NÃO É -; ou nos desenhos e projetos do Cabelo em seu blog Igual Você, em que fica claro o amor que ele tem por sua família e a fé em uma cidade mais humana e consciente através do uso da bicicleta como meio de transporte; ou nos textos que minha amiga e colega de trabalho Desirée Furoni escreve em seu Espresso e Puro, em que desfia suas delicadas (ou nem sempre-rs) crônicas pessoais e universais com grande sensibilidade; na diversão que são os comentários d'A Livreira Anarquista, de Portugal, e os do [manual prático de bons modos em livrarias], que fazem piada com o sofrimento de atender clientes em livrarias; na lucidez e inteligência, fora a combatividade, de Denise Bottmann em seu excelente não gosto de plágio, onde faz a defesa acalorada da profissão de tradutor e, de quebra, divide generosamente conosco seu modo de trabalho, suas dúvidas e seus questionamentos sobre o ato tradutório (entre outras coisas bacanas); nos comentários ácidos e extremamente pertinentes da Madrasta do Texto Ruim em seu ótimo Objetivando Disponibilizar, em que achincalha, com estilo e humor, os péssimos textos que pululam pelas internets da vida (e em publicações impressas, também).


Todas essas coisas se unem às minhas prosaicas descobertas na lide com a vida de graduando de Letras - e aqui desfio algumas das minhas maiores vergonhas intelectuais, com os devidos agradecimentos às pessoas que me ajudaram a me redimir: encontrar Dickens por causa da faculdade, depois de "Grandes Esperanças" ter 'dormido' durante quase 20 anos em minha estante e chorar logo nas primeiras páginas (obrigado, Sandra Guardini); desfrutar, pela primeira vez, da maravilha que é "Macunaíma", de Mário de Andrade, depois de tê-lo detestado na juventude; ainda, encantar-me com a poesia do mesmo Mário de Andrade e ser solidário a todas as suas angústias artísticas (obrigado, Simone Rufinoni); ler, com olhos despidos de qualquer ideia pré-concebida, os poetas românticos brasileiros e deleitar-me com eles (obrigado, Augusto Massi); vir a saber que é possível ir além do "legal" na leitura de um poema (obrigado, Roberto Zular e Laura Izarra).


Isso não quer dizer que eu ignore as verdadeiras misérias cotidianas, como a fome, a doença, a pobreza, a desigualdade, a corrupção, os interesses econômicos, as guerras etc. Na verdade, isso me leva de volta ao texto do Emir Sader: é por não querer me render ao ceticismo-cinismo que considero essas "fontes de otimismo" importantes para que eu me mantenha combativo, para que eu possa, de alguma forma, fazer um pouco de diferença e trazer alguma transformação para melhor, embora não para mim, porque acho que a colheita deve ser para quem vem depois. Explico: se hoje posso viver nesta democracia "vacilante", mas democracia, é porque outros antes de mim lutaram contra um momento de obscurantismo e de terror, tanto lá atrás, na idade média, quanto ali atrás, na ditadura militar que corroeu muitos dos sonhos de nossos pais, mas não conseguiu lhes extirpar as raízes.


Ou talvez eu seja só um sujeito ingênuo, mesmo.


(desculpem pelo longo post)