20 de jan. de 2010

Aranha de Vidro

(ainda da série de textos perdidos)

Até um século atrás existiu, na província oriental de Zi Duang, uma aranha que parecia ser de vidro.

Tendo devorado suas presas ela ornaria sua teia com os esqueletos, criando, em semanas, uma urna de despojos.

Sua teia era, também, única, pois tinha muitas camadas, como andares de um edifício.

No alto deste lugar parecido com um palácio, reunidos com aparente cuidado, estavam pequenos e brilhantes objetos; vidros, contas, gotas de orvalho. Alguém quase poderia chamar aquilo de altar. Quando a brisa soprava através desta construção produzia sons lamentosos, chorosos.

Pequenos lamentos, pequenos choros.

Os filhotes da aranha ficavam assustados e procuravam freneticamente por sua mãe. Mas a aranha de vidro havia partido há muito, sabendo que os filhotes sobreviveriam sozinhos de algum modo.

Ah, a aranha de vidro tinha olhos azuis, quase como os de um humano. Eles derramavam lágrimas na invernal virada dos séculos.

(Tradução livre de "Glass Spider", de David Bowie)
Sem data; provavelmente meados da década de 90.

Saudades de Elis

(encontrei este texto perdido em minhas coisas - é velho...)

          Ouço Elis Regina no rádio, com Adoniran Barbosa, numa gravação antiga, com os dois conversando, rindo muito e, claro, cantando. Eu me emociono toda vez que ouço ou vejo qualquer coisa com Elis. Muitas vezes até às lágrimas. Ainda não consigo entender muito bem esta comoção que me aflige nesses momentos.
          Quando Elis morreu, em 1981, eu tinha 16 anos, estudava no SENAI durante o dia e começava o 2º grau à noite. Não fosse pelo fato de eu ser extremamente fechado, já àquela época, eu passaria facilmente como um adolescente comum. Mas me lembro bem daquele dia, quando soube da notícia pela televisão. Chorei muito, como nunca antes havia chorado pela morte de qualquer pessoa. Era quase desespero. Não me conformava e não podia aceitar que ela, justo ela, tivesse morrido. Nem quando meu padrinho morreu, quando eu tinha 14 anos, chorei e me desesperei tanto. Se me perguntarem o porquê eu sinceramente não saberei responder. Posso fazer muitas proposições, algumas só formadas hoje, adulto.
          Naquela época eu já ouvia muita música popular brasileira. Eu ouvia muito Bethânia, Caetano, Gal, Chico e Milton. Já não era comum gostar deles na minha idade. Era a década de 80, Abertura, e bandas de rock pipocavam no verão. Assim como meu gosto por livros e quadrinhos, que lia avidamente, meu gosto musical era realmente estranho. E tinha Elis nesse meio. Não sei porque, mas eu adorava quando exibiam na TV os especiais com ela. Eu acho que já sentia que o que ela emanava não era só a voz: era a alma, dela e da música que interpretava, que vinham junto com a voz, me invadindo todo, me emocionando inteiro, uma força arrebatadora e delicada ao mesmo tempo. Acho que é isso que as pessoas traduzem como "intérprete excepcional".
          Cada música com Elis era uma parte dela mesma, representando de forma intensa o que ela era. Samba, samba-canção, música de "fossa", bossa nova. Tudo era ela. Eu queria cantar como ela, fazer com a música o que ela fazia: extrair a emoção mais pura de dentro de seus vários sentidos.
          Levei anos para ter um disco de Elis. Tenho dois e algumas gravações esparsas. Tudo de Elis para mim é sempre muito novo, mesmo o que já é velho conhecido.
         Até hoje choro quando vejo Elis. Brigo com ela, xingo, digo, de maneira irracional e infantil, que ela não tinha o direito de ter-nos deixado quando havia tanto que ela ainda poderia fazer. Ouço músicas, hoje, que são a cara dela, e penso: isso ia ficar lindo na voz dela. Aí vem essa raiva e eu digo "não! niguém deveria ter o direito de partir com tanto talento e emoção para mostrar, tão cedo!". É injusto para conosco, que aprendemos a amar o amor que ela tinha, essa capacidade de entrega, em tudo. Não a conhecia pessoalmente, não assisti nenhum de seus shows, não tiva a possibilidade de vê-la senão na TV. Mas que saudade!
          Aos religiosos, aos espiritualistas, aos amigos e parentes dela: não se preocupem. Não quero atrapalhar o descanso de ninguém. Sou egoísta, sim, mas com ela. Porque me lembro de Ella Fitzgerald, velhinha, cantando no aniversário de 70 anos de Frank Sinatra e superando-o em talento, limpeza de voz e swing, e penso no que Elis estaria fazendo hoje e no que ela faria aos 70!
          Muitas coisas maravilhosas, com certeza. Tão boas quanto este momento com o reverenciável Adoniran, que comento depois. Hoje é para Elis, que mais uma vez me emociona às lágrimas, alegre por saber que ela existiu e permanece. "Como um estrela".
27/02/1995
12h12
Em tempo: hoje tenho quase todos os discos da Elis que foram lançados em CD e também os DVDs; e ela ainda me emociona. Demais.

Reflexões sobre São Paulo I

Todos os dias, ao sair do trabalho pelo estacionamento, olho para o céu. Na minha São Paulo de horizontes verticais espanto o cinza e o cansaço do cimento olhando o arranjo fugidio de formas e luzes que se desenham na noite do horário de verão. Lembro dos quadros de Turner e suas transparências luminosas e etéreas e por segundos o peso do dia longo e exaustivo se desfaz. Tempo suficiente para uma rápida e profunda tomada de ar para poder prosseguir.

Mas basta chegar à rua para que o mundo real bata em minha cara: na minha São Paulo da pujança econômica há uma pujante miséria humana. Fantasmas de seres humanos amontoam-se e distendem-se pela praça com seus olhos cavados de delírio e desprezo. Nossa indiferença lhes é indiferente. Será? Não posso conceber que seja. Diariamente nos recusamos a reconhecer aquele indivíduo que perdeu sua individualidade a ponto de não poder nem contar como número em dados estatísticos. Ok, perderam-se nas drogas, no crime. Mas por quê? Complicada pergunta, mais ainda a resposta. São pessoas que se entregaram ao medo, ao desespero, e se encontram abandonadas de si mesmas.

(continua)

19 de jan. de 2010

Impressões...

     Alguns de meus amigos, apesar de saberem da existência do meu blog Andarilho do Vento, não costumam visitá-lo. Por isso acabo imprimindo e mostrando meus poemas para eles. Gosto de ver suas reações, pois elas são sempre motivadas por sentimentos alheios aos meus próprios quando escrevi e isso torna o processo altamente instigante.
     Na madrugada de ontem para hoje escrevi um poema chamado "Eutanásia" que, naturalmente, lida com a morte, a finitude. Veio-me quando eu já estava deitado, pronto para dormir. Como tenho alguns livros na estante ao lado cama, peguei um, a poética de Vinícius de Moraes, e comecei a folhear, ler coisas aqui e ali, e li um poema que ele escreveu para Pedro Nava (creio que na ocasião da morte deste). Um poema de exaltação ao amigo e também de lamento e saudade. Aí senti vontade de escrever algo sobre a morte. Por estranho que pareça, é o segundo poema que escrevo em torno desse tema em três dias. Talvez a Indesejada ande rondando meus pensamentos mais do que deveria (brrrr!).
    Pois bem, mostrei o texto a algumas pessoas e algumas o acharam 'bonito', outras ficaram quietas, mas um amigo deprimiu-se, porque o poema parece definitivo demais. Para mim escrever tem efeito de catarse, já que normalmente só escrevo a partir de sentimentos ditos desagradáveis (angústia, melancolia, desesperança). Porque escrever torna-se possibilidade de reflexão, de enfrentamento de si mesmo, de reconhecimento de limitações, de compreensão de nossa própria condição na terra.
    Fico imaginando o que passa pela cabeça das pessoas quando elas lêem. Principalmente quando lêem poesia. Na verdade, o que passa por seus corações, como que aquele texto único se abre em mil possibilidades de interpretação, de reconhecimento por parte de quem o lê. Gosto do espanto que essas leituras me causam, porque sempre me ensinam mais a respeito de mim mesmo. E contribuem, sempre, para o próximo poema.